terça-feira, 16 de abril de 2013

A merda e deus , sem traumas . Por Milan Kundera .

    "Quando era garoto e folheava o Antigo Testamento para crianças , ilustrado com gravuras de Gustave Doré , via nele o Bom Deus em cima de uma nuvem . Era um velho senhor , tinha olhos , um nariz , uma longa barba , e eu dizia a mim mesmo que , como tinha boca , devia comer . Se comia , devia ter intestinos . Mas essa idéia logo me assustava , por que , apesar de pertencer a uma família pouco católica , sentia o que havia de sacrilégio nessa ideia dos intestinos do Bom Deus .

    Sem o menor preparo teológico , a criança que eu era naquela época compreendia espontaneamente que existe uma incompatibilidade entre a merda e Deus , e , por dedução , percebia a fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã , segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus . Das duas uma : ou o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus- e então Deus tem intestinos - ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele .
 
    Os antigos gnósticos pensavam tão claro como eu aos cinco anos . Para resolver esse maldito problema , Valentino , Grão- Mestre da Gnose do séc II , afirmava que Jesus 'comia , bebia e não defecava' .
    A merda é um problema teológico mais penoso que o mal . Deus dá liberdade ao homem e podemos admitir que ele não seja o responsável pelos crimes da humanidade . Mas a responsabilidade pela merda cabe inteiramente àquele que criou o homem , somente a ele ."


Milan Kundera , em A Insustentável Leveza do Ser .

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